Recursos para o trabalho do Luto na Terapia Analítico-Comportamental Infantil

Amanda Viana dos Santos | 14 Jun 23

O presente artigo é fruto de trabalhos realizados para o Curso em Terapia Analítico-Comportamental Infantil, promovido e orientado pela psicóloga Amanda Viana dos Santos (CRP – 09/14306) por meio do projeto Guia Prático dos Pequenos (disponível no Instagram @guiapraticodospequenos). A proposta dos trabalhos foi apresentar recursos terapêuticos como apoio ao terapeuta no processo psicoterápico de crianças que estão passando pelo processo de luto. O manuscrito foi escrito por Amanda Viana dos Santos com colaboração de Thaís Rêgo, Érika de Abreu Silva, Ana Catarine Medeiros Barreiros e Claubia Figueiredo de Oliveira, que desenvolveram os recursos psicoterapêuticos.

No luto, emoções e lembranças que remetem à dor são inevitáveis. Por culturalmente esses fenômenos serem configurados erroneamente como “ruins”, cuidadores de crianças podem desencorajá-las a entrar em contato com sentimentos ou pensamentos dolorosos: por exemplo, pais podem fugir do assunto sobre o ente querido que faleceu, disfarçar e até mesmo inventar metáforas que acabam sendo prejudiciais (e.g., dizer “a pessoa não está aqui, porque foi viajar” – a criança poderia manter-se na espera do ente querido e até mesmo sentir-se chateada por não ter sido convidada para a viagem ou por ele não ter ligado ou ter se despedido dela). Esses comportamentos de esquiva ou de fuga dos cuidadores geralmente dificultam a aprendizagem da criança em lidar com a perda e a se adaptar ao ambiente modificado (ausência do ente querido).

Vivenciar o pesar da perda por meio da expressão dos sentimentos e pensamentos, sem tentar lutar contra, é uma oportunidade da criança se sentir acolhida e amparada em sua dor. No contexto psicoterápico com crianças que estão no processo de luto, se faz importante o terapeuta construir caminhos terapêuticos que evoquem emoções, lembranças e pensamentos relacionados à pessoa ou animal que faleceu (Nascimento, Nasser, Amorim, & Porto, 2015). A trilha por esses caminhos, ainda que ocorra aos poucos no início e que seja desconfortável, auxilia na redução significativa dos efeitos dolorosos, por meio dos processos de extinção e de construção de repertórios comportamentais de regulação emocional (Nascimento et al., 2015).

O uso de recursos terapêuticos, como os lúdicos, se configura como um apoio ao terapeuta para acessar e intervir em conteúdos clinicamente relevantes da criança. A escolha de qual material ou atividade utilizar, bem como qual será seu manejo ou adaptação, deve ser guiada pela análise funcional de cada caso. Para o trabalho de luto, há diversas possibilidades de recursos e atividades que podem ser realizadas com a criança. Algumas possibilidades são: utilizar músicas, filmes ou poemas que retratam perdas inevitáveis; escrever cartas ou diário, expressando seus pensamentos e sentimentos sobre a situação; jogar jogos sobre emoções que criam contexto para que ocorra a psicoeducação sobre os sentimentos (e.g., jogo da memória das emoções); utilizar cartazes ou desenhos sobre o ciclo da vida da natureza em animais e em humanos; abrir oportunidade para perguntar qualquer curiosidade ou dúvida que tiver sobre o tema de morte ou luto; realizar um livrinho de memórias da pessoa ou animal falecido; escrever ou desenhar coisas que a pessoa ou que o animal que morreu fez por ela e pelas quais a criança se sente grata; fazer um desenho daquilo que ela mais sente falta de fazer com a pessoa ou animal que morreu; discutir se há alguma coisa de que ela gostaria que quem morreu soubesse e pedir para escrever sobre isso; discutir que coisas a criança poderia dizer para um amigo dela que está passando pela mesma situação; pedir para fazer um desenho de algo que aconteceu que ela gostou muito e que sente saudade (c.f. Neufeld & Reis, 2015).

Portanto, recursos terapêuticos podem criar contexto para a criança entrar em contato e interagir diferente com as emoções, lembranças e pensamentos relacionados àquele que se foi, facilitando a adaptação no novo ambiente, sem perder a conexão emocional e as memórias saudosas. Considerando 1) o contexto cultural que, acidentalmente, influencia a ocorrência de comportamentos de fuga ou esquiva de eventos privados dolorosos e 2) como isso pode impactar negativamente no processo do luto; além da 3) a importância do uso de recursos terapêuticos na clínica infantil para intervenção, o presente artigo teve como objetivo descrever dois materiais terapêuticos inéditos como auxílio ao trabalho de luto com crianças.

O primeiro recurso, “Luto infantil: Memórias Afetivas”, inspirado no livro infantil de Neufeld e Reis (2015), foi construído pelas autoras Érika Abreu e Ana Catarine Medeiros. A atividade possui o objetivo de auxiliar a criança a compreender e a passar pelo luto de forma lúdica, trabalhando memórias e sentimentos significativos relacionados à perda da pessoa ou animal querido. O material foi desenvolvido para que seja aplicado em crianças com idade entre 4 e 12 anos.

A atividade é dividida em seis partes. O primeiro momento é destinado para que seja realizada a psicoeducação com a criança sobre memórias afetivas: o que são e como aparecem no dia a dia a partir dos cinco sentidos. Por meio do lúdico (e.g., desenhar, pintar e colagens), a segunda etapa explora as memórias afetivas da criança, a partir de cinco perguntas que, de modo geral, evocam: 1) um momento que a criança viveu com aquele que perdeu; 2) um lugar, cheiro ou objeto que desencadeia a lembrança da pessoa ou animal citado anteriormente; 3) quais atividades a criança sente falta de fazer ao lado dele; 4) como se sente ao se lembrar dele; 5) algo que a criança gostaria de falar para essa pessoa ou animal que não está mais presente.

O recurso, no formato de folha A4, pode ser impresso e, para sua realização, sugere-se que sejam separados materiais para desenho (lápis grafite, lápis para colorir, canetinhas, tintas e pincéis etc.). Espera-se que o recurso seja um auxílio à criança no processo de luto ao possibilitá-la entrar em contato com lembranças e sentimentos difíceis e ter a chance de poder ressignificá-los para sua adaptação nesse novo ambiente sem a presença da pessoa ou animal amado. No material, utilizou-se o termo “’boas’ memórias” e “emoções ‘positivas’ e ‘negativas’” no sentido de serem agradáveis ou desagradáveis, e não como “erradas” ou “ruins”.

            O segundo recurso foi desenvolvido pelas autoras Thaís Rêgo e Claubia Figueiredo. O material se trata da descrição de como o filme “A Caminho da Lua” pode auxiliar no trabalho de luto com crianças. O objetivo da atividade é trabalhar, de forma lúdica, o luto com crianças que apresentam dificuldades em lidar com os sentimentos causados pela perda de um ente amado. Espera-se que o recurso possa contribuir para que a criança seja capaz de falar sobre seus sentimentos e adquirir estratégias para lidar com eles, tal como obter a identificação de estímulos que têm gerado déficits ou excessos comportamentais.

O recurso se inicia com um breve resumo da história do filme, que conta sobre uma garotinha chamada Fei-Fei que perdeu a mãe ainda muito criança e, desde então, vive apenas com seu pai e seu coelho de estimação. No decorrer do filme, o pai dela inicia o namoro com uma mulher que tem um filho mais novo que a protagonista. Então, Fei-Fei busca encontrar uma lenda de histórias infantis, para que pudesse ter novamente a exclusividade de seu pai. A lição que ela aprende é que seu pai continuará a amando mesmo que a vida tenha mudado um pouco e agora tenha novas pessoas nela.

Algumas cenas foram selecionadas para que fosse possível abordar temas relacionados ao luto com o público infantil, como seguir em frente após a perda de alguém e a construção de uma nova família. A seguir, são sinalizadas os tempos das cenas que possibilitam esse trabalho:

Tabela Luto - cenas do filme: "A Caminho da Lua"

 

Para concluir a atividade, sugere-se que se solicite à criança que faça um desenho para a pessoa falecida, ilustrando um momento feliz no qual ela poderia “guardar” aquele ente que se foi. Junto à criança, pode ser refletido pontos de proteção para garantir o não esquecimento daquele ente, como um álbum de fotografias, vídeos ou algo sugerido pela própria criança.

Ao final no material, encontra-se um jogo da memória com cenas do filme para utilizar de diversas formas com a criança.

Como utilizar o recurso: sugere-se que as cenas em destaque sejam apresentadas para a criança na sessão e, logo após, discutidas junto com o terapeuta como os conteúdos apresentados no enredo podem possuir semelhança funcional com o que ela está enfrentando no seu dia a dia. Essa reflexão pode ser norteada pelas perguntas apresentadas na Tabela 1. O jogo da memória pode ser utilizado como forma de criar contexto/ocasião para os questionamentos ocorrerem assim que as cartas forem sendo viradas e, então, haver possibilidade de avaliação e/ou intervenção terapêutica.

Portanto, foram desenvolvidas possibilidades de recursos terapêuticos como contexto para a criança interagir com diversas e diferentes emoções, pensamentos e lembranças saudosas relacionadas ao processo do luto. Além disso, os materiais criados podem auxiliar o terapeuta em sua avaliação e análise funcional, planejamento e intervenção terapêutica. O presente manuscrito não esgota possibilidades do uso de recursos e instiga o leitor a refletir novas possibilidades de criação de materiais para o trabalho do luto infantil na clínica.

Para baixar gratuitamente os materiais, clique aqui.

 

Referências

Neufeld, C. B.; Reis, A. H. (2015). O vovô não vai voltar? Trabalhando o luto com crianças. Hamburgo: Sinopsys

do Nascimento, D. C., Nasser, G. M., de Amissis Amorim, C. A., & Porto, T. H. (2015). Luto: uma perspectiva da terapia analíticocomportamental. Psicologia Argumento, 33(83).

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